Recensões




Recensão de Bornal de Narrativas - Manuel Cardoso


Recensão de Bornal de Narrativas - João Lobo


Bornal de Narrativas - José Manuel Mendes


Ares de Sobreposta - José Manuel Mendes


Bornal de Narrativas - João Lobo


Cristais de Natal


Palavras para uma Homenagem


A Prosa de josé Fernandes da Silva



Recensão de Bornal de Narrativas - Manuel Cardoso

"O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive."



Pe. António Vieira

Numa vistosa e cuidada edição Calígrafo e com um magnífico texto de apresentação da autoria de José Manuel Mendes, José Fernandes da Silva voltou à narrativa curta. Em boa hora, digo eu, modesto e interessado leitor. Poeta por excelência, músico por paixão, professor por ganha-pão, este minhoto (de gema e orgulho) passeia pelas letras como se nascido entre as linhas de um qualquer tratado da arte de bem escrever.

Na verdade, um dos aspetos que mais impressiona o leitor é o cuidado na escolha das palavras, o esmero na adjetivação equilibrada, escapando sem esforço à verbosidade barroca que tanto por aí pulula. Por outro lado, é nítido o respeito pela linguagem popular. E também aí é interessante verificar como o autor escapa à armadilha da brejeirice: o seu sentido de humor é delicado, irónico e eficaz sem cair na facilidade da palavra atrevida.

Este humor delicado e refinado está, também ele, pejado de humanismo: a maioria das centenas de personagens do livro são dotadas de uma simplicidade e mesmo bondade humana, não escapando mesmo o meliante, o sacana que foge à lei mas que não passa do desastrado "pilha-galinhas" ou do hilariante trapaceiro mal sucedido. No prefácio a esta obra, o escritor Fernando Pinheiro atribui-lhe um tom moralista; eu não iria tanto por aí; esse moralismo talvez não seja mais do que a expressão dessa crença na bondade humana, num certo tom de Rousseau moderno.

Em termos formais, as narrativas que este livro nos apresenta têm o condão de manter as linhas do conto tradicional, linear, muitas vezes com final aberto que convida o leitor a imaginar desfechos, outras vezes com remates finais surpreendentes e outras vezes ainda com desfechos hilariantes como o da bela Liberata no conto Coisas da Natureza. O autor foge sempre, com mestria, daqueles finais inesperados, milagrosos, que retiram o tom realista à narrativa. Aqui tudo é natural como a própria vida; tudo é simples como os campos e os rios, os perfumes da erva acabada de cortar ou da água pura do riacho que dá vida a homens e bichos.

Esta estrutura de conto tradicional é servida por uma linguagem tremendamente visual: as descrições criam imagens claras na mente de quem lê e a sequência narrativa obedece sempre a uma lógica do "acontecível" que reforça o tremendo realismo dos cenários e das estórias.

Tudo isto leva o leitor a encarar estes contos de uma forma perfeitamente natural, como se de crónicas se tratasse.

Finalmente, uma referência a esse traço distintivo da obra deste autor: a ruralidade. Para José Fernandes da Silva, esta admiração pelo universo rural é a expressão do culto das raízes, dos valores ancestrais mas sem aquela sensação de perda e desencanto que carateriza muita da literatura sebastianista, "passadista" que por aí se encontra. Esta ruralidade é a expressão do caminho para a realização do ser humano que tenta escapar a este materialismo capitalista e selvagem em que nos encontramos mergulhados. O campo de outros tempos é o contraponto da cidade mergulhada na tirania dos mercados que hoje nos tenta subjugar.



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Domingo, 18 de maio de 2014



Manuel Cardoso




Recensão de Bornal de Narrativas - João Lobo

Tive a subida honra, há já um ror de tempo, de prefaciar ao A. uma das suas obras já editadas: BARCA DE ESPERANÇA. Singelo mas belíssimo. Singelo rosário de pulcritude e de outras adorações, riquíssimo no seu esplendor discente.

Do gracioso e vasto florilégio em que se constitui a sua obra literária, tanto em prosa como em verso, e musical, já trazida a lume, vem agora à luz pública, este saboroso BORNAL DE NARRATIVAS, que é repositório de funda humanidade. Em cada tipo desenhado plantou o A. inimitável figural em cada um de nós. Como ocorre noutras obras da operosa lavra do escritor, arrancados do seu, mas também nosso, peregrinar na vida. Pedra de fecho, mas simultaneamente augural, em cada conto se abre e renasce a vastíssima infinitude do nosso pequeno mundo, tributário de uma ordem suprema que nos incita e concita.

Tira - que- tira, mergulhado na leitura prazente, a obra, sd cabo a rabo, devora - se de fôlego.

O dilecto amigo, Fernando Pinheiro - que não sabe dizer não nem à literatura nem aos verdadeiros amigos -, edificou ara de intróito que acede à obra, magnífico mural que se constitui em antegosto da planturosa colectânea de textos que dão corpo e valia ao livro.

Pisteiro melhor não antevejo eu para o leitor extrair de cada uma das narrativas a energia dinâmica que lhes dá vida e fruir do deleite propiciado pela sua beleza estética e fundo ressoo interior.

Que mais poderei eu enunciar, salvo que o autor constitui para cada um de nós referência singular, e maior, na arte da composição literária, assim do nosso concelho, assim da nossa região? Sobre o livro arrisco algumas brevíssimas notas:

1 - O A. respiga essencialmente factos ocorridos, sucessos que recolheu no tarimbar da vidinha ou de que teve notícia no largo círculo de amigos e de familiares, coloridos, é certo, com a rica paleta que usa para compor o variegado pinturesco da sua obra. Do faceto às coisas mais sérias, tudo cabe no rico alfobre humano,. O longo arco temporal onde se inserem os contos, não constitui impedimento à unidade da obra, nem quebra do sainete próprio do diacrónico deslize fluvial em que o A. inscreve cada um dos contos.

2 - Aquele riquíssimo material, ransformado agora em valiosa obra de arte literária, extraiu-o José Fernandes do vivenciar do povo, do trastejar da vidinha, como só nós sabemos ajeitar-nos e dizer-nos. Devolve-o agora, enriquecido pelo seu génio criador, ao mesmo povo, para deleitosa e lustral usufruição.

3 - Esta profunda imbricação entre o escritor e o meio permite-me afirmar que o A. é inteiramente genuíno, fiel à identidade matricial, e alheio aos nauseabundos e melífluos interesses encampados nas "capelinhas", que servem de cobertalhos a uns tantos e mostra-se arredado da mantinha protectora do círculo estéril da "escola", quase sempre desinçada da singularidade real que a obra de arte tende a escalpelizar. O A. não escreveu nem para si nem para a roda elitista, chocha e peca, sujeita à contingência que devora e à transigência da moda que tudo consome. Ao invés; concebeu o A. espelho laminado e de boa reflexão onde as gentes, sem quebra de fidelidade, se podem mirar na sua caleidoscópica aparição no mundo.

Dito de outro modo: como entendo eu os contos'? Pois bem: clarões flumíneos ressurgentes da infinita touceira da vida em que nos inscrevemo!

Parafraseando um dos contos, também eu poderia dizer que o A., nas margens do melhor cânone, nos conduz da assunção à ascensão. A incitação feita está: quem quiser que suba esta outra escada de Jacob.

O A. observou, sentiu, ouviu, a improfunda alma do povo, o pulsar da vida. Iluminou-se nas circunstâncias vivenciais trazidas nas complexas avulsões do tempo e do seu " modus".Ordenou, supriu, refez, uniu, coordenou, suturou, deu cor, deu som, e, devidamente ornamentado e arranjado, outra vez devolveu à memória comum o que dela era. A isso aditou a rica ucharia que medra no largo bornal de peregrino da vida. E tudo ajuntando, fintando e deixando a levedar, usando a rasoira da justa medida, deixou-nos saboroso repositório de vivências que encanta e seduz. Se o A., aqui e além, carregou nas tintas ou se pôs na urdidura deste ou daquele conto a sua pitada de sal, a sua pincelada a modelar cores ou mesmo a sua tomba restauradora, outro fim não teve senão mondar o excesso, suprir lazeiras de gente mafra, aplainar a sanhuda orografia dos factos e deixar trabalho resistente ao caruncho do tempo.

E o que era dele, povo, era riqueza dos nossos antecessores, e o que deles era nosso é, por direito natural. No respeito pela defesa desse património escreveu o A. o BORNAL DE NARATIVAS. A deslado, ergueu os reconhecidos nossos fantasmas que, doravante, a nós e aos vindouros hão-de acompanhar e perdurar. E nós com eles! É próprio da arte literária, por via da unção comum, abrir portas à perenidade.

A alma de um povo não se hipoteca: ou se perde - e com ela a identidade toda de um povo - ou se enriquece. É a substância primordial, matricial, inalienável, que nenhum ianque ou troyko é capaz de nos retirar. Do chão humoso e frumental que é a alma do nosso povo, José Fernandes foi ao maturado sementio das nossas riquíssimas vivências. Foi. E cortou, arrecadou, malhou. Depois, fez moenda, amassou, enfornou, cozeu, e fintou o melhor pão espiritual de que se pode alimentar o leitor.

Em suma; recolheu, transformou sem ofensa à realidade, à idiossincrasia, à mentalidade, e fez arte. A nossa arte, diga-se.

O A. jogou-se todo no fogo sagrado da maceração, da conversão, da rubificação. Construiu o texto que se levanta do húmus, que dele transcende, habitado por desconhecidas energias que lhe dão vida e beleza, para comum fruição.

O que são os contos de que vos falo? O vivo pulsar do povo e a transformação alquímica das formas de vida geradas pela alma sensível do nosso escritor e pelo seu engenho da arte literária.

Flórulas das espigas singulares ou comuns com que vamos cerzindo a vasta trama dos universos.

E sendo nós, pela escrita ainda, outros somos. É essa a arte suprema que reside no fascínio da escrita: a circunstância de cada um de nós nela se rever, julgar imerso e compartícipe.

É esta dimensão subtil, etérea, transcendente, imaterial, quase sagrada, em que se erige a obra. Por ela ganhou o A. merecido jus ao tributo que lhe é devido. É dever maior prestar-lhe o nosso reconhecimento. E o A. nada mais pede, nada mais reclama, nada mais exige, salvo que lhe leiam os textos. E esse honrado crédito goza o A. dos vilaverdenses.

(…) Como refere Fernando Pinheiro na badana da contracapa, o A. não se desviando da matriz do conto tradicional e da sua clássica conformação - oralidade, síntese, condensação, linearidade objectiva, acume resolutivo -, não deixa de cingir os textos ao pendor apologético, satírico ou moralizante. É essa a nossa matriz, a índole própria do conto tradicional português.

No saber ver - mais com a alma - e ouvir durante o longo curso da civilização residiu a nossa sábia Universidade. Não basta que nós habitemos o mundo. Urge que também nós intermediemos com o orbe - que o mundo, todos os mundos, habitem em nós. O conto e o seu pendor apologético, crítico ou de exaltação, foi inventado muito antes das críticas substanciadas nas grandes movimentações de massas que nos acompanham. Muitíssimo antes dos massificados fenómenos de comunicação que todos os dias, às catadupas, nos entram pelos lares dentro, sem bater à porta! E do conto em geral, - desde Esopo até aos irmãos Grimm, desde Eça a Jack London, o genial contista das longínquas e frias terras do Klondike, de rica mineração aurífera -, se fez exaltação da confraterna convivialidade universal, da Natureza, e acima de tudo, do Humano.

E também o seu tradicional intuito apologético faz parte do nosso património identitário. Como nos velhos templos gregos, a deslado do comprazimento da leitura, sempre soubemos juntar aos textos o aforismo de exemplo e proveito, fosse ele explícito, fosse ele por via de uma mensagem em que se precipita todo o excurso discursivo e que deste emerge como ilíquida e evanescente aparição morigeradora.

Aqui e ali, como é próprio da nossa índole, da narrativa estala a gargalhada salvífica, o fulminante cautério do riso que traz o siso. "O riso é uma filosofia. Muitas vezes a salvação" - escreveu Eça de Queirós. Assim sucede em muitos contos que compõem o livro de que se leva sumido discurso.

De realçar uma particularidade dominante em todos os textos: o carácter breve dos contos. Duas, três páginas, está a flostria exposta, o teatrinho representado, a sentença ditada, o apólogo consignado. Hoje, o tempo acelerou-se de tal forma, e tornou-se tão exígua a sua disponibilidade no comezinho tarimbar da vida, que muito escasseia à leitura. Nas civilizações ditas mais avançadas, estudos adrede realizados, revelam que o leitor médio rejeita os textos densos, extensos, os ancoradouros de labirínticos pensamentos, por maior que seja a sua valia. Mesmo nos textos mais graciosos e leveiros, no acto da leitura, neles não se detém senão escassíssimos minutos!

Em suma: escasseia o tempo para irmos de rota com o icebergue de vasta dimensão e longo curso que demora largos dias, senão mese, a consumir, a deperecer . Não. O que se mostra compatível com a " celeritas" que ora nos transporta é o pequeno bloco flutuante, o humoque, donde, numa aberta de tempo e de consciência, poderemos alcançar mais longe por entre os nevoentos borraceiros das circunstâncias. É esta a nossa hodierna condição!

É no captar da circunstância que flameja no instante e na sua conversão em objecto simbólico que o A se revela exímio. É esse desfile de humanidade que preenche o livro: nas vastas errâncias do escritor e da sua escrita, tudo e todos têm cabimento: do sensato ao sonhador, da magalona que passa, deixando rasto de chieira que nos faz alongar o olhar, até ao mal - armado na lufa - lufa da vida que a sorte enjeitou ou a sua desaustinada freima conduziu até aos perigosos escolhos de encalhe.

Em suma: o texto literário não quer pensamentos encadeados, de pendor abstracto. Não! Se alguém almeja ser lido, através do misterioso e do mágico, tem de apontar setas ao coração do leitor, mais fundo e ainda mais ignoto do que todos os universos!

Finalmente, merece destaque a escolha de vocabulário apropriado, a ordenação frásica rigorosa, a justeza da expressão lógica, a musicalidade do estilo usado, tudo a convergir numa retórica estética aprimorada, reveladora da fidelidade ao discurso popular e ao sentimento do leitor.

Bem haja o A.


Lisboa, 8 de Abril de 2014



João Lobo




Bornal de Narrativas - José Manuel Mendes

Desde os primeiros versos, a poesia de José Fernandes da Silva traz indicadores que nunca se alteraram, seja na escolha de modelos populares ou tradicionais de composição, seja nos conteúdos, apesar da diversidade que se detecta de colectânea para colectânea. De alguma maneira, é essa constância que torna tão próximos os seus textos na travessia dos anos, já mais de duas décadas sobre o título augural, de 1992.

Um mesmo clima marca, de resto, os trabalhos em prosa e até na esfera musical. Ao gosto pelas coisas simples e por uma irradiação de afectos cuja genuinidade releva, nas formas declarativa ou memorial, juntam-se os universos do religioso e das relações quotidianas, tanto no domínio privado como nas emergências sociais. Por isso, a partir das dedicatórias, os escritos que nos destina abraçam nomes da ágora pessoal, aí onde partilha fala e canto, evocação e procura, temeridade, anseio, júbilo e dor, a dor de ver partir os entes amados ou conhecer as agruras da comunidade quando atingida pelas injustiças.

A sua voz exprime, até nas estrofes mais sequiosas de literatura, uma dominância oralista, como se talhar rimas (ou a sua ausência), metros, figuras de estilo, também estas sem extensão ou aventura, fosse afinal um modo de estar com os outros ao rés do ocasional e, não raro, junto a uma transcendência que se reconhece e assume. Em redor, a terra, os cheiros, os usos e rotinas, ancestrais e presentes, a natureza, as evidências do bem – o pão e o gesto que o reparte, o lugar da casa, uma casa que é reduto do amor familiar e se quer aberta a quem vier de entre aqueles que o prolongam.

Neste acervo se reafirma uma personalidade, um trajecto a que não faltaram coerência e pertinácia, o desejo de experimentar incisões e sons outros no pentagrama que lhe é inato. E não recorro por acaso a ingredientes discursivos que reenviam para a música, uma das dilecções de José Fernandes da Silva. Ela é, a par da lhaneza das pulsões sensíveis e da generosidade original, um veio de quanto idealiza e consuma. Para comprazimento dos seus leitores, decerto agraciados com este seu regresso à edição.


José Manuel Mendes




Ares de Sobreposta - José Manuel Mendes

São páginas de memória em curso livre, percorrendo lugares e momentos a que os textos conferem o sentido da distância e do presente, uma doação aos leitores - os íntimos, desde logo.

José Fernandes da Silva, através de fragmentos que (a final) restituem um universo de vivências, escreve o passado com os instrumentos que mais elege: simpleza e coloquialidade, emoções, afectos, retratos de quem teve e mantém a seu lado no desenho dos anos, atmosferas de esplendor ou névoa, gosto pela autenticidade do narrado. Por isso, de algum modo, tece uma outra monografia da comunidade que o viu nascer e assim saúda.

Ares de Sobreposta é um livro generoso. Como os que integram todo um acervo autoral cujos apelos e vozes há muito se nos tornaram fraternos.


José Manuel Mendes




Bornal de Narrativas

Do gracioso e vasto florilégio em que se constitui a obra literária de José Fernandes da Silva, tanto em prosa como em verso, e musical, já trazida a lume, vem agora à luz pública, este saboroso “Bornal de Narrativas”, que é repositório de funda humanidade. Em cada tipo desenhado plantou o A. inimitável figural de cada um de nós. Pedra de fecho mas simultaneamente augural, em cada conto se abre e renasce a vastíssima infinitude do nosso pequeno mundo, tributário de uma ordem suprema que nos incita e concita.

(...) Os textos, na sua variegada policromia, irrompem da vida quotidiana, da experiência vivida, e todos eles se inscrevem na razão prática, solarizada por valores de sã convivialidade e do solidum que cimenta a humanidade. Funcionam como espelhos donde, num certo tempo e num certo modo, emerge o padrão comum de todos nós e dos que nos precederam. (...) No almejo desse louvável desiderato, o A., na expressão plástica, usa com mestria o diminutivo, que afeiçoa e aproxima, muitas vezes aliado à dupla adjectivação; v.g. no conto “O Museu do Sebastião Tinoco”, referindo-se a um velho macho, dele diz que era “já velhote e rebentadinho de todo”; os rifões, a quem Vico chamou a “voz dos deuses”: “Cá se fazem, cá se pagam”; a comparação “gorda como uma lontra, feia como uma coruja”; “esbelta como uma gazela”, “ linda como um cravo”; “ feio como um bode”. A oposição que estimula, desvanece e incita; a metáfora: uma frondosa cerejeira é um “andor asseado”. Nos temas exalta os valores da conduta profissional e cívica (veja-se o “Sargento Paulino” que entroniza o cidadão exemplar, cumpridor, um autêntico prumo de virtudes e de rectidão de vida); a resposta pronta e contundente, precauciosa e avassaladora, que emerge dessa pequena-grande jóia literária que é o conto “Dá-me Lume”): da família, (os valores representados por avó e mãe são bem retratados nos contos “Mãezinha”, “A Intempérie”, “Dulce”, “Abraço sem Tempo” e “Fica Adiado”. Também o amor filial digno, ainda que porventura à margem do cânone reconhecido, é exaltado no conto “Uma Filha”. O valor à razão, que fez triunfar o amor sobre o preconceito e as conveniências, no conto “A Fidalga de Guisande”; a previdência e o amor uxório em “Obsessão”. A Natureza (com seus mistérios e forças transcendentes); a capacidade empreendedora, a suprema humildade de quem aceita a transigência das formas e dos destinos; exalta o exemplo edificante e que deve ser seguido, a tomada de decisões racionais assentes no conhecimento enriquecido pelo trabalho e pela experiência; a dedicação, a experiência, o espírito inovador, a persistência, a dignidade e o humanismo.

Mas a crítica contundente e mordaz, explícita ou implícita, também não deixa de encorpar intensamente o conteúdo e a semiótica dos textos. A este propósito veja-se como a voz da conveniência social é fustigada impiedosamente no conto “O Cirurgião Gonçalo”; a discriminação, o desprezo e as suas maléficas consequências, no conto “Um Peso, duas Medidas” e “Convalescença”. Evidencie-se a recriminação do orgulho e da inveja no conto “Ascenção e Assunção”, o anátema da malvadez, no conto com o mesmo título; a crítica à personalidade duplicada que emerge da tensão em contraste no título “O Senhor Beltrão Neiva” (onde o ser visto e reconhecido se constitui na persona que nos dá o ser social donde resulta que ninguém é perfeito e que todos carecemos da piedosa caridade que compreende e perdoa; que conhecer é sofrer, assim como a santa e douta ignorância que irrompe do corpus textual como é bem não despiciendo entre os humanos e até mesmo entre os doutos); a subserviência excessiva e manhosa que não raro desemboca em cidadãos pundões e é sinal de aleijões maiores; o desamor de pai e as suas terríveis consequências no conto “Um Peso, Duas Medidas”.

Os tipos humanos que exornam dos contos são nossos. Pascácios e lambões, finórios e flibusteiros, são objecto de crítica impiedosa. Veja-se v.g. “Aníbal”, pág.134.

Lê-se no conto: “… era um mimalho e o seu paleio resumia-se a uma dúzia de frases feitas. Embora magrote, assapava-lhe bem, tanto na comida como na bebida, preferindo sempre coisas boas”.

O pai, sovina e abonado capitalista, “um sovina, um mandão” que “não permitia réplicas” gostava dele porque no filho soubera instilar a obediência canina e funcionava como um “boneco de corda”. Não obstante, era um mariolão dos tais que usava como podia contra o pai as armas que se encontravam ao seu alcance. De índole retrincada e mandona, aliava a subserviência à vantagem da conveniência. Um poço de perfídia e de ronha que jungia a pertinácia à maldade e se tornou num lambão de alto coturno.

Na ida para o santo sacramento do matrimónio, quando o foguetório estralejou e a noiva com perigo de estorcegar o tornozelo estrebuchou, era todo falinhas mansas: - “Cuidado, Carminho!” Mas já no regresso da Igreja, quando outra vez, a sua consorte de desequilibrou: - “Olha para o chão, Carmo, e vê onde pões os socos!”

Patarata calculista, um salafrário dos tais, na mira de obter o favor do pai, e sempre no intuito que este alargasse os apertadíssimos cordões à bolsa, não admira que submisso, na noite nupcial tivesse inquirido do progenitor:

- Com quem vai dormir a Carminho, snr. pai?!”

- “Contigo, meu vurro!” – retorquiu-lhe o progenitor, assarapantado, decerto.

A ausência de uma sã formação e educação geram abismo atrás de abismo. Quando tal, de cangalhas, vai o mundo de pernas ao ar! No “Pilha-Tudo” a lição a tirar é a de que o crime não compensa. Olho vê, pé vai, mão pilha, o Pilha-Tudo, como mandam os bons princípios da Justiça e a boa moral, não podia ter outro destino: foi pilhado pelas legítimas autoridades.

Pilhado, foi! Agora, condenado, isso fia mais fino!...

(...) O exórdio que se retira do conto “A Concertina” é claro: o álcool e a noite são maus conselheiros e andam eivados de perigos que muitas vezes triunfam sobre o incauto abusador. E estopa à beira do lume… Quem se mete em tais andanças convoca fantasmas que dão azo ao prolóquio segundo o qual “a ocasião faz o ladrão”. Arriscos há dos quais não restam “Nem dedos nem anéis!” – é a conclusão prática a retirar. No conto “O Emigrante” evidencia-se uma verdade que se extrai do senso comum e que se acolhe na consabida sentença: “ Cá se fazem, cá se pagam” ou “O castigo anda a cavalo”.

Outra nota que a meu juízo deverá ser exaltada é a da “cor local”. A propriedade da linguagem adaptada ao tempo, ao meio e às circunstâncias, que auxilia a verosimilhança do narrado e à adesão do leitor, aproxima do real conhecido e torna a representação familiar. A faina da moagem no conto “Coisas da Natureza” pela sua adesão à realidade é quadro pitoresco, verdadeiramente exemplar.

Aqui e ali o A. usa de linguagem que apesar de ainda falada nos nossos dias parece já arcaizante tanto o deslize entre a língua usada pelo discurso oficial e comum dos grandes centros e a linguagem que nos é própria levada aos textos do livro.

Vejam-se as expressões : “semelhava um molho de guiços tal era a sua magreza”; “rijas lostras”(pág. 73); “com o pau de marmeleiro estropeou..”(ibidem); “o carro de bois era aparelhado”; Liberata “rilhou uma côdea de broa de há uma semana” (pág. 78); “teso como um virote”(pág. 105); “cuco ribaldeiro” e “passadas a fugirem para o falso”(pág. 138), etc., etc.

Uma outra nota é a da expressividade trazida pelo uso apropriado da metáfora. Vg. “fica bem calçada, quer em propriedades, quer em ouro e notas.(pág.114); e “o Dr. Gonçalo já fez o que podia e já mija para os sapatos (pág.115); “o velho galaró seria bicho para lhe violar a moçoila e lhe impingir uma barrigada” (pág.124); “o Francisco das Chãs dorme de dia para quilhar os outros… de noite. (pág.130).

“O tempo não se compadece com o tempo”, como se escreve no conto “Ascenção e Assunção”. É, pois, tempo de findar. Em remate:

Vale a pena ler os textos e debulhar o seu encantatório conteúdo.

Por mim, li e senti o livro de que vos falei com grado interesse e o maior proveito pessoal. No seu elevado mérito a obra sedimentará o nosso riquíssimo património e ainda que a opaca espessidão do presente possa ofuscar a evidência, eu creio que o A. assentou pedra basilar no sagrado panteão do nosso orgulho e da nossa identidade.

Vale.


Lisboa, 8 de Abril de 2014.


João Lobo



Cristais de Natal

Antes mais nada, o título. Cristais de Natal. Poucas vezes um livro terá tido um título tão feliz. Os cristais são belos e simples. Como belos e simples são os contos que José Fernandes da Silva escreveu para este livro.

E o Natal. A consoada e o dia de Nascimento, como são conhecidos no Minho os dois dias mais importantes da quadra. O Natal, logo no primeiro conto (Consoada Feliz) é-nos apresentado como um suave milagre, para usar a tão feliz expressão de Eça de Queirós. Um milagre singelo e suave, um tempo de felicidade discreta, tão simples como os cristais feitos de geada. Nesse conto, o Rogério viera de fora. Era um migrante, como tantos que por aí encontramos hoje em dia, talvez à procura de um qualquer Natal. Mas alguém seria enviado pelo Espírito do Natal para oferecer ao Rogério uma réstia de luz, tão simples, tão singela, mas suficiente para fazer nascer um sorriso cristalino.

Por mais que o poeta proclame, o Natal nem sempre é quando um homem quiser. Porque como diz o autor, “uma grande parte das vezes, o homem não quer nem se esforça por querer”. É por isso que o 25 de Dezembro é e será sempre um dia único.

Uma das principais qualidades deste livro é a enorme variedade de abordagens do espírito natalício, fruto da fértil criatividade artística do autor. Por exemplo, no conto “Presente de Natal, a dádiva é da mãe natureza, sob a forma do azevinho, que é dádiva sagrada; no conto “Prenda de Natal” encontramos uma bela alusão a um momento histórico fulcral. É que houve um ano em que o Natal foi em Abril; porque é quando um homem quiser e nesse ano os homens quiseram, finalmente, acabar com a ditadura. Foi o ano em que o Natal se escreveu com as letras da palavra Liberdade.

São pobres aqueles sobre quem José Fernandes da Silva escreve; mas não são os pobres miserabilistas ou acomodados, à espera do subsídio, nem muito menos os pobres conformados com os velhos e tacanhos valores ultraconservadores da “pobreza honrada”. É, isso sim, a pobreza de um povo que luta, de um povo que, com suor e fé, sonha que um dia “a riqueza, fraterna, abrace a pobreza” (página 29). Ou seja, um povo que clama e luta por um mundo mais justo e fraterno.

É claro que os valores cristãos estão sempre presentes neste quadro social e mental. Mas não se esgotam em si mesmos. São valores ativos; constituem um quadro moral que não se pode separar das condições materiais de existência.

No entanto, nem mesmo o Natal é eterno; pelo menos algumas das tradições que envolve estão ameaçadas; é o caso do presépio tradicional ou dos jogos de pinhões. Este livro pode também ser entendido como um repositório dessas tradições e, acima de tudo, desse espírito que todos queremos manter. Ou melhor, cristalizar.


Domingo, 15 de fevereiro de 2015


Manuel Cardoso



Palavras para uma Homenagem

Dizia François Mauriac que “a leitura é uma porta aberta sobre um mundo encantado”. É verdade! De facto, foi através de um “RECEPTÁCULO” de palavras que eu pude entrar num mundo de aventura ficcionista que me aumentou a muita consideração que eu nutro pelo seu autor. O ACTO DE ESCREVER é uma tarefa difícil e solitária, como num dos seus romances José Saramago escreveu: «Dificílimo acto é o de escrever, responsabilidade das maiores...». Se atentarmos no acto de escrever veremos que nele se ocultam responsabilidades várias: a responsabilidade estética, a cultural, a cívica, e a ética. Ao longo da leitura do “Receptáculo”, um punhado de pequenas narrativas transportam-nos através do tempo e do espaço e familiarizam-nos com destinos individuais e colectivos, de histórias ficcionais, onde estas responsabilidades se manifestam. Mas o acto de escrever é também acto mágico que se abre ao mundo da imaginação e do mito! Acto que acalma a ânsia de saber e do desejo de conhecer! Acto que transporta uma mensagem a que não poderemos ficar indiferentes. Como seu leitor, quero com estas palavras prestar homenagem ao José Fernandes, como homem da casa, dinamizador de cultura que se preza de ser. Quando o vejo e cumprimento, dá-me todos os dias uma lição de humildade! Não se vangloria da obra publicada, antes aspira sempre a mais, apenas manifestando o orgulho natural do trabalho cultural já desenvolvido. Não vive da ilusão, e sabe-o por experiência própria, de que a criação literária não vem do nada, graças apenas ao toque fabuloso da sorte na fronte do escritor. Sabe bem como todo o escritor de corpo inteiro, o trabalho que é necessário, o labor continuado a que Camões chamava «honesto estudo» para que se possa chegar à obra feita. Eu sei que o José Fernandes ainda nos dará outras obras fazendo jus ao talento que aqui celebro. Quem nos faz reviver o tempo e o espaço, momentos que celebram a natureza e a nossa gente, fá-lo também porque interpretou a condição do escritor sob o signo do trabalho metódico, árduo e silencioso. Por isso, é com orgulho e honra que hoje aqui lhe reconheço as qualidades acima do homem comum, e sinto-me honrado por cruzar os mesmos corredores do nosso local de trabalho. Sei, porém, que o José Fernandes jamais se deixará tolher pelos mecanismos da fama e da consagração, própria daqueles que praticam a facilidade como princípio. Entre outras e muitas qualidades, este é um escritor que assume a noção – e disso não se envergonha – de que há uma aprendizagem da escrita literária, uma longa aprendizagem que em José Fernandes passou pelo trabalho da poesia. Saúdo, pois, a apresentação deste trabalho em prosa e através destas palavras presto homenagem ao “nosso” escritor e agradeço-lhe a revelação de um mundo que, sendo nosso porque diz respeito ao homem, só o podemos saborear porque o “nosso” escritor o deu à estampa! Que estas palavras possam demonstrar um agradecimento sentido! Bem hajas!


Braga, Abril de 2006


Carlos Gama Nogueira



A Prosa de josé Fernandes da Silva


“ Os livros são as abelhas que levam o pólen da imaginação de uma mente para outra”


James Lowell


Parafraseando James Lowell, esta nova obra de José Fernandes da Silva, tem a capacidade de transportar o pólen da sua capacidade criativa, desta vez em prosa, para os que, sendo crianças, jovens ou adultos, amam a leitura e fazem dela poder criador.

Lê-se esta obra com gosto e, à medida que se percorre este “ punhado de narrativas”, vai-se descobrindo a facilidade com que o autor se adapta a outros estilos de escrita, como a ficção, e a simplicidade como partilha momentos de uma infância cheia de sonhos mas que teimosamente se quer esconder no tempo. Cada conto, lenda ou relato são verdadeiros hinos a valores em que acredita, tais como a justiça, a gratidão, a solidariedade, a honra,…

A referência aos elementos da Natureza bem como à sua educação religiosa são já paradigmas do seu estilo e da sua obra poética e musical. Mas neste “Receptáculo”, o seu amor a Deus, exteriorizado na desejada perfeição da natureza, na bondade humana, na sabedoria transmitida pela velhice e na imprescindível presença da mulher e mãe na terra, reflecte-se em cada palavra, em cada frase, em cada narrativa.

José Fernandes da Silva consegue, ainda, expor, de uma forma clara e simples, as relações intergeracionais de outrora, nomeadamente a ligação afectiva entre avós e netos e, sobretudo, relatar tão docemente memórias de um passado cheio de ruralidade e cuja riqueza vocabular faz os leitores regressar às origens das gentes minhotas. À pobreza aldeã de tempos idos é associado o fenómeno da emigração (que tanto fez separar pais de filhos), inerente ao subdesenvolvimento do povo do norte que procurava uma vida melhor.

Todavia, é o cariz pedagógico desta obra que lhe confere uma mais valia, na medida em que não há conto, nem lenda, nem relato que não apele à reflexão de quem o lê. Efectivamente, na lenda “Covardia” pode-se destacar que “Nem tudo na vida são rosas delicadas e inofensivas” que cada indivíduo deve estar sempre preparado para uma “inesperada emboscada”, expressões que nos remetem para aspectos autobiográficos referenciados na presente obra. No conto “Na Levada” também se pode observar oportuna pedagogia, quando um das personagens, sensível e replecta de experiência de vida, tal como José Fernandes da Silva, adverte “Na vida hás-de achar incontáveis momentos como este que, em lugar de te premiar, te farão verter amargas e copiosas lágrimas…”. E se se atentar no conto “Um Acto Heróico”, é-se confrontado com a dimensão humana do trabalho e do esforço individual ou colectivo como condições endógenas à realização do que se quer concretizado. Aqui, o autor, ora revelando alguma resignação com a sua sina, ora pretendendo alertar os mais incautos, afirma “No percurso da vida verificamos que não pode suceder tudo como ambicionamos, tendo que existir esforço e garra para atingir os fins a que nos propomos. E a vida só é bela se a soubermos viver, saboreando as conquistas, ou os nadas do dia-a-dia. Cada pequena batalha, ganha honestamente e fruto de constante empenhamento, deve ser motivo de efusiva alegria.”


Parabéns José Fernandes

A comunidade educativa agradece

Maria da Conceição Maia